21 junho, 2017

O luto e a luta

Miguel Guedes
(JN)

Hoje é o dia em que saímos do luto nacional com tudo por resolver. Findos que estão os três dias institucionais de dor, não há nada que tenha ficado diferente. Nem podia. Numa dor destas, o silêncio é das poucas companhias recomendáveis pela forma como nos propicia um tempo que seja. À distância de um oceano do país, a comoção sofre um verdadeiro bloqueio e embarga-se pelo choque. Vejo o país nas notícias por uma alegoria de inferno e somam-se os especialistas internacionais a explicar, à boleia da catástrofe, o que é isso do "dry lightning" ou trovoada seca. Pausa. Não há decreto que nos enterre o coração na areia quando a cabeça não pára para pensar. Não pode haver soluções enquanto o fogo caminha a passos de gigante, parecendo que voa. A luta começa agora.
A rendição absoluta de gratidão aos bombeiros que lutam e aos civis que ajudam. Isso e a pouca comiseração para quem tenta encontrar culpados em tempo de inferno. É impressionante a fogueira de vaidades e pouco tento que impele certas pessoas a abrir fracturas em tempo de terramoto. Para esses agentes sumários da punição, mais velozes do que o próprio vento que dá asas ao fogo a encontrar bodes expiatórios, não se limpam armas em tempo de guerra. E atacam, mesmo quando na paz podre de todos os invernos nunca os vi a deixar de dar beijinhos no dói-dói. À semelhança de quem tenta fazer notícia ao lado de um corpo carbonizado, aqueles que tentam encontrar culpados entre o sofrimento apenas descem mais um degrau do palco para onde imaginam estar a subir.
Pedrógão terá que ser o nosso público "ground zero". Nunca conseguimos trabalhar a propriedade privada da floresta que acaba por nos ser comum em catástrofe, nunca deixámos de ceder aos interesses e ao facilitismo. Sempre soubemos que a natureza não nos dá apenas pores-do-sol de excelência e nasceres do dia radiosos. A força natural da humanidade, de resto, não é impedir o seu curso. Compete-nos criar as estratégias para a acomodar e antecipar na violência perante um conjunto disperso de propriedades avulso sem investimento e sem o mínimo de zelo, desertificação populacional num agregado de restos de país votados ao abandono. Sempre olhámos para a floresta numa visão-túnel onde lá ao longe se vislumbra uma saída clara. Mas quando lá chegamos, pela proximidade do simples andar da carruagem, só vemos que arde. E assim vamos, todos os anos, em típicos lamentos que ninguém leva a sério. Acredito que até agora.
Nota de RoP: 
Sei a quem se refere Miguel Guedes no sublinhado desta sua crónica, e subscrevo-o. Contudo, a margem de tolerância para os co-responsáveis por estas tragédias já ultrapassou todos os records. Mais do que os afectos do Presidente da República e as desculpas revoltantes do(s) Governo(s), o que realmente importa realçar é a morte de 64 pessoas e o sofrimento de todas as outras (feridos e familiares). A vida dos que morreram é irreversível. 
Se o Estado fizesse a sua parte, se em vez de andar a brincar literalmente com o fogo, encarasse este recorrente problema com a seriedade que ele merece, talvez tivesse reduzido estas mortes, pelo menos a metade. Esse sim, seria o maior gesto humanitário que podia ter, não só por estas vítimas, como pelas vítimas de tragédias antigas e as que vão acontecer no futuro. 

O verão só agora começou e, como está mais do que constatado, nada foi feito de relevante quanto ao ordenamento preventivo das matas e florestas. É o preço a pagar quando um país se contenta com governantes vulgares. São, de facto, todos iguais. Não temos hipótese.  

Nota-O sublinhado da crónica do Miguel é meu.

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